Apesar de imigrante e refugiado serem conceitos diferentes, com abordagens distintas, e deste último ter seu próprio estatuto no Brasil, ele não deixa de ser considerado um migrante e sua condição será influenciada pela legislação recém-sancionada
Texto: Stéfanie Rigamonti
Há algumas semanas, foi aprovada, pelo presidente do Brasil, a nova Lei de Migração (Nº 13.445/2017), que, após passar pelo Senado, por meio do projeto de lei PLS 288/2013, e ser fruto de reivindicações e discussões entre a sociedade civil, sofreu, arbitrariamente, pelo governo federal, 20 vetos a importantes pontos.
O texto delimita os grupos que são abarcados pela legislação – imigrantes, emigrantes, residentes fronteiriços, visitantes e apátridas – e ratifica que as normas específicas para os refugiados no Brasil não serão prejudicadas. Todavia, em meio aos seus artigos, faz várias alusões aos refugiados e, ora distingue estes últimos dos demais imigrantes, prevendo condições diferentes a cada um, ora os trata de forma igualitária, sendo possível antever que de alguma forma eles serão afetados por suas normas.
Segundo a advogada e representante da ONG Bibli-ASPA – que atende centenas de refugiados e imigrantes – Adriane Secco, especialista em Direito Constitucional pela PUC-SP e atuante em direitos humanos e imigração desde 2013, a separação de conceitos entre imigração e refúgio é necessária para que o Estado e a sociedade proporcionem o acolhimento e a documentação de acordo com cada caso.
“O refugiado corre sérios riscos à sua integridade física e psíquica se retornar ao país de origem sem que a situação deste esteja apaziguada. Dessa forma, ele busca não só a assistência social, mas a proteção de um Estado que lhe garanta direitos fundamentais de sobrevivência”, explica.
Por outro lado, a profissional também entende que, embora haja diferenciação de conceitos e de documentação, tanto o imigrante quanto o refugiado são pessoas que migram e, na prática, deve haver igualdade entre ambos no que tange ao acesso a serviços básicos, como saúde e educação.
Nessa linha de pensamento, conforme aponta a advogada e também representante da Bibli-ASPA, Elissa Macedo Fortunato, mestranda pela USP em Políticas Públicas de Integração de Refugiados, “em linhas gerais, o Estatuto dos Refugiados tem enfoque na caracterização do refúgio e no procedimento de concessão da documentação, enquanto que a Lei de Migração traz princípios humanitários e prevê direitos e deveres aos migrantes; assim, ela acabará sendo aplicável de forma complementar ao refúgio”, explica.
Ou seja, em diversos casos não abordados pelo Estatuto dos Refugiados, vigorará a Lei de Migração, já que esta legisla sobre a condição dos estrangeiros em geral.
Portanto, a lei em si, que representa um grande avanço e vai ao encontro dos esforços humanitários internacionais e nacionais, beneficiará, de várias maneiras, os refugiados, porém alguns pontos vetados pela presidência também os prejudicarão. Por isso, e dada a crescente presença deles no Brasil, é válida a discussão sobre os prós e contras da nova lei, tal como foi sancionada, e de que forma ela os afetará.
Pontos positivos e negativos
Adriane Secco comenta que, com a sanção, houve a implementação, em lei, do que antes eram apenas matérias de regulamentações e normas esparsas, como os vistos humanitários, além da ampliação de vistos temporários e de reunião familiar.
Um ponto importante que será benéfico aos migrantes em geral é a garantia à participação e à manifestação pública cidadã, antes reprimida pelo Estatuto do Estrangeiro, criado durante a Ditadura Militar do Brasil, com objetivos que condiziam com o cenário político do período, e que, em diversos itens, criminalizava os estrangeiros e burocratizava excessivamente os processos para emissão de documentos.
Outro destaque é a garantia de acesso a assistência judiciária gratuita, com a atuação obrigatória da Defensoria Pública em casos de detenção de migrantes nas fronteiras. Há muitos refugiados que entram no País de maneira não formalizada e oficial, como em navios cargueiros, e às vezes chegam a ser presos temporariamente.
Nesses casos, agora a Defensoria Pública é obrigada a atuar para a efetivação da solicitação de refúgio às autoridades competentes, e, conforme o já existente Estatuto do Refugiado, “em hipótese alguma será efetuada sua deportação para fronteira de território em que sua vida ou liberdade esteja ameaçada, em virtude de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opinião política” (artigo 7, § 1º).
Mas a advogada Adriane Secco também adverte que, apesar de a nova lei ser fruto de um trabalho árduo dos movimentos sociais e da sociedade civil – que não somente representaram os interesses dos estrangeiros, mas também cobraram agilidade e transparência durante todo o trâmite, acompanhando, passo a passo, as votações -, os 20 vetos significaram uma perda para o fortalecimento da estrutura jurídica voltada aos migrantes no geral.
Ela destaca os vetos que mais marcaram o retrocesso em matéria de Direitos Humanos e garantias fundamentais, e que atingirão os refugiados no Brasil. Um deles é a exclusão da possibilidade de o migrante ser aprovado em concursos públicos.
Além disso, os indígenas que circulam entre fronteiras de seu território, na América do Sul, e que muitas vezes sofrem perseguições e maus-tratos, seriam considerados migrantes vulneráveis no Brasil, segundo o Projeto de Lei do Senado (PLS), mas essa proposta também foi vetada.
Ela não diz respeito diretamente aos refugiados, mas versa sobre pessoas que também estão em constante situação de vulnerabilidade em seus territórios de origem.
A continuidade do trabalho
Diante do exposto, Adriane Secco opina que, mesmo com pontos positivos e negativos, há muito que mudar. “A lei não está totalmente de acordo com a realidade e necessidades dos migrantes, o Poder Público ainda se mostra ineficiente para atuar nessas questões e a maioria da sociedade está alheia a tudo isso com informações equivocadas a respeito de migrações”, pondera.
“A falta de conhecimento sobre o que ocorre no mundo da migração é uma das causas de xenofobia. As informações enganosas que circulam, principalmente nas redes sociais, podem ser devastadoras em uma construção de políticas públicas e mudanças legislativas, por exemplo. A noção de cidadania ainda é muito pequena para essa parcela da população que desconhece a gravidade de seus atos verbais e físicos, contribuindo para uma criminalização do migrante”, completa.
Para isso, é fundamental a participação do Poder Público em ações de conscientização que cooperem para a formação de uma sociedade menos preconceituosa e mais acolhedora.
O diretor geral da Bibli-ASPA e professor de estudos africanos e árabes na Universidade de São Paulo (USP), Paulo Farah, também se posiciona sobre a questão: “a nova de Lei de Migração é um avanço em relação ao Estatuto do Estrangeiro. Mas, infelizmente, houve 20 vetos, vários pontos não foram contemplados e a estrutura migratória permanece a mesma. Esse tema precisa ser mais discutido, assim como o problema da anistia, que não entrou. É importante que as entidades e a população que se preocupam com direitos humanos formem uma aliança para ampliar o debate e aprimorar essa temática. A Bibli-ASPA participou do debate desde o início e mantém seu pleno interesse no assunto”.