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Histórias de refugiados: o amor de infância no Mali que só se concretizou no Brasil

    Prometidos na infância e separados pela distância 10 anos depois, casal consegue se reencontrar no Brasil, onde acontece o primeiro beijo; e no meio disso tudo, ela quase é deportada

    Somente conhecendo a cultura dos personagens desta história é possível entender seu desfecho. No Mali, país do noroeste africano que atualmente vive sob ataques jihadistas e de grupos extremistas ligados à Al-Qaeda, dois primos de segundo grau foram prometidos na infância. Ela com 4 anos, e ele com 15.

    Eles deram a sorte de se apaixonar e concretizar com prazer a promessa de casamento no futuro. Seguidores do islã, mesmo sabendo que a união aconteceria, viveram a adolescência quase como que bons amigos, sem nem um beijo para selar o amor. O que diferia o relacionamento deles de uma simples amizade é que havia um compromisso e, por isso, ele a sustentava financeiramente.

    Sekou Sacko, hoje com 30 anos, mudou-se para o Brasil incentivado pela mãe em 2014, ano em que o País sediou a Copa do Mundo. Até então, o Mali não vivia sob nenhum tipo de conflito armado. A ideia era apenas buscar uma qualidade de vida melhor.

    Uma vez aqui, sua remuneração inicial com o primeiro emprego era de R$ 900. Fazia milagre com esse dinheiro. Além de pagar aluguel, alimentação e arcar com outras despesas, ainda separava uma parte para enviar ao Mali, à sua prometida, Kadiatou Diarouma, hoje com 19 anos.

    Quase deportada

    Cinco anos se passaram, e chegou a vez de Kadiatou vir ao Brasil, em setembro deste ano, uma vez que Sekou já havia se estabelecido aqui como refugiado, dadas as circunstâncias atuais do Mali com a chegada do Estado Islâmico ao local.

    Pelo fato de ela não ter obtido visto de entrada no Brasil, a ideia inicial do malinês foi tentar trazer a noiva via Bolívia, pois acreditava que o país latino-americano facilitaria sua entrada.

    O voo procedente de Adis Abeba, Etiópia, fez conexão no Brasil e pousou no aeroporto internacional de Guarulhos no dia 25 de setembro, de onde ela embarcou para a Bolívia dois dias depois. Este último país, contudo, não permitiu sua entrada, talvez  por falha de comunicação, já que Kadiatou, que só fala o idioma francês, não contava com um tradutor.

    Quase dois dias retida no aeroporto de Santa Cruz de la Sierra, ela enfrentou condições péssimas, sem poder se alimentar direito. Apenas no dia 28 foi enviada de volta a Guarulhos, de onde sairia um voo para a Etiópia. Cogitou-se, portanto, depotar a jovem, que não tinha visto para entrar no Brasil e, portanto, estava sob responsabilidade da companhia de aviação Ethiopian até seu embarque de volta.

    Desesperado com a situação e preocupado com a noiva, Sekou conversou com professores da ONG Bibli-ASPA, que atende refugiados e imigrantes em São Paulo, e onde o malinês estuda português. A instituição, então, acionou a Defensoria Pública, a Agência da ONU para Refugiados (Acnur), a Missão Paz e o Posto Humanitário, que recepciona pessoas deportadas e não-admitidas no aeroporto de Guarulhos.

    Em sua chegada a Guarulhos, Kadiatou foi bem recebida, já que a Polícia Federal brasileira estava ciente de toda a história. A própria PF acabou por mantê-la em um hotel até enviar intérprete para que ela pudesse fazer o pedido de refúgio no dia seguinte. Depois, a Polícia ainda providenciou táxi para a mulher ir à casa de seu companheiro.

    “Acionaram tanta gente, que nem sei o que deu certo”, lembra Sekou animado e com o aspecto de quem está aliviado.

    O beijo do reencontro

    O reencontro não poderia ter sido marcado de forma melhor: com um beijo, que a essa altura do campeonato já era permitido já que, enquanto Sekou estava no Brasil, Kadiatou casou-se com o prometido a distância por meio de uma cerimônia numa mesquita que reuniu as famílias de ambos os lados.

    “Lá não precisa de papel assinado. É só falar que aceita diante de testemunhas”, explica o refugiado malinês. Por isso o casamento pôde acontecer mesmo sem a presença do noivo. Agora, o objetivo do casal é formalizar a união também aqui no Brasil em um cartório, apenas por segurança, para evitar que tentem deportar Kadiatou novamente. Isso também facilitará alguns trâmites legais.

    A preocupação do casal é que, depois de todo esse esforço, as circunstâncias políticas do Brasil forcem uma nova separação. E o medo não é descabido dada as iniciativas do ministro Sergio Moro de criar uma portaria que previa a deportação de imigrantes perigosos. A medida acabou sendo revogada após a polêmica que causou, afinal, restava saber quem o governo considerava perigoso. Um tanto subjetivo!

    “Foram cinco anos sem se ver. Só por telefone. E ela sofreu mais que eu [por estar lá]”, desabafa Sekou, preocupado com o futuro.

    Ajude a BibliASPA

    A BibliASPA recebe cerca de 300 refugiados por semana, de mais de 40 nacionalidades, e lhes oferece gratuitamente cursos, alimentação, transporte, traduções, apoio assistencial, jurídico e psicológico.